Adentra ao recinto onde o Delegado de Polícia recebe denunciantes, suspeitos, testemunhas, acusadores e defensores, um homem aparentando 60 anos, de tez curtida pelo sol e mãos de quem trabalha com a terra.
— Delegado, eu estou com câncer no pulmão por causa deste produto.
— Como assim, meu senhor?
— Veja aqui na rotulagem. SUSPEITO DE PROVOCAR CÂNCER.
— Sim, mas porque o senhor está afirmando com tanta certeza?
— Porque tem mais de 6 anos que uso na minha lavoura e o câncer apareceu 3 anos atrás.
— Certo, mas pode ter sido outra causa, por que o senhor não veio aqui antes?
— Porque só esse ano que colocaram essa advertência, antes não tinha.
Foi aberto inquérito!
♦ O Delegado foi até a Revenda que forneceu o produto, para começar a investigação.
— O balconista relatou que conferiu na bula se o produto era indicado para feijão, que foi a cultura citada pelo homem, e fez a venda. Completou dizendo que pediu para o homem ir tomar um cafezinho e voltar em meia hora, visto o técnico da loja estar trazendo o produto do armazém fora da cidade, e falar com ele para passar a Receita.
♦ Chamaram o técnico citado pelo balconista.
— O que o senhor me diz?
— O Engenheiro Agrônomo disse: Sim, falei com ele sobre a praga específica que o preocupava; e, de posse dos elementos necessários prescrevi uma Receita, documento obrigatório para quem usa um agrotóxico.
— Mesmo com aquela frase?
— Eu só receito produtos devidamente registrados no Ministério da Agricultura; se está liberado é porque pode usar.
♦ Arrolaram o representante do MAPA na região.
— Bom, cada pedido de registro é examinado pelo MAPA, ANVISA e IBAMA. Essa parte de toxicologia é da ANVISA.
♦ Solicitaram a presença de técnico da ANVISA.
Pela avaliação da ANVISA o produto não causa câncer, pode ser usado. Ocorre que a Lei que rege o registro dos praguicidas é de 1989, e dependendo do caso, somos obrigados a exigir certas advertências.
— Poderia explicar mais?
— O técnico retirou alguns papéis de sua pasta e falou: Olhe aqui no artigo 3º da Lei 7802 de 1989 – “Fica proibido o registro de agrotóxicos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica”. E, chamou a atenção para a última recomendação inserida na frase. Hoje, a ciência apresenta resultados mais refinados das experiências, comprovando que as características de um produto em particular possam indicar probabilidades de carcinogenicidade, mas na prática ele não ser de fato. E esta é a função da 2ª parte da frase, caso contrário seria desnecessária. A ANVISA expediu a Resolução 296/2019 para elevar o conhecimento a esse nível, aproveitando a introdução do sistema de classificação e rotulagem GHS (Globally Harmonized System of Classification and Labeling of Chemicals) no regulatório brasileiro. Para não fugir da forma de adoção deste sistema em países que já o haviam implementado, foram ajustadas as categorias de toxicidade, passando de quatro para seis. As frases de advertências foram também adequadas ao novo sistema. De forma, que este produto não fica enquadrado como proibido, conforme o entendimento atual do artigo 3º, e, por outro lado, não se omite ao usuário os perigos redefinidos.
- O assunto foi comentado na região e um fiscal agropecuário do serviço estadual de fiscalização apresentou-se para prestar esclarecimentos:
— Na minha função eu sou obrigado a seguir as legislações, e neste caso, o Decreto 4074 de 2002, portanto bem mais novo que a Lei 7802 que ele regulamenta, repete exatamente o que diz a Lei, sem qualquer explicação adicional. Assim sendo, se eu verificar um produto no comercio ou em propriedade rural com uma frase deste tipo, sou obrigado a interditá-lo.
Acompanhando o fiscal estava um Promotor Público membro atuante do movimento Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
— Senhor Delegado, eu não vi nada tão absurdo quanto isso; o órgão federal obriga a colocar uma frase que deixa em alerta e temerosos todos que querem usar o produto, ao invés de proibi-lo como exige a legislação. Se querem atualizar o conhecimento, alterem primeiro a lei, com toda a discussão no Congresso, que representa a sociedade como um todo. E, outra irregularidade foi a Receita, prescrita sem visita à lavoura.
— Bom isso não é assunto da Polícia, e conhecendo a região acho impraticável o técnico visitar todas as propriedades que compram produtos em determinado dia.
Não sabemos o que o Delegado decidiu, pois essa narrativa se passa em um futuro próximo, a depender das decisões atuais da ANVISA.
Eng. Agr. Tulio Teixeira de Oliveira – Diretor Executivo da AENDA
www.aenda.org.br / aenda@aenda.org.br Abril.2020 |